domingo, 18 de novembro de 2007

O dia em que um ator rasgou Shakespeare


Um bêbado trajando luto me lembrou Carlitos. Inebriado por vinho barato e dando vida a poemas de Paulo Augusto e Cefas Carvalho, entrou em transe. E no transe se fez nu, e nu, se fez bicha.No V Sarau da Aliança Francesa tivemos mais uma vez a presença do ator Rodrigo Bico, que encarnando as transformações dos poetas - a conversão gay de um e os estilhaços do outro – encantou a platéia que mais uma vez entrou nos versos embalada por sua expressão corporal violenta e sua voz poderosa. E como se não bastasse, foi dirigido por ninguém mais ninguém menos que Cláudia Magalhães.

Uma esfera nostálgica miscigenando os tesões do amor homossexual e do amor heterossexual dos que entregam a alma, amparada por uma vitrola, cigarros, álcool, vinis e ... livros premiou a noite. Livros obsessivamente organizados lado a lado, enfileirados, protegidos pelo tapete vermelho, pela boca vermelha, pela língua vermelha.

E a bicha se vai e incorpora o macho, e o macho ama absurdos. Só quem ama absurdos sabe o que é amar absurdos. E só poetas escrevem o amor absurdo. E só atores traduzem o amor absurdo. E só uma poesia de quem ama absurdos, revelada por um ator que ama absurdos que foi dirigida por uma atriz que ama absurdos pode falar de amor com propriedade.

E nos ‘Estilhaços’ de Cefas Carvalho, Rodrigo Bico mergulha, seus espíritos se trocam e num rompante, um livro é escolhido e amassado, rasgado, jogado longe, numa despedida do passado que só quem ama absurdos consegue fazer.

E o livro era uma edição bilíngüe impressa em Portugal de Romeu e Julieta, de Shakespeare. E isso não estava no script. Mas entre tantos outros, o destino escolheu esse. O mais belo, o mais raro, o predileto, o irrecuperável. Tinha que ser esse, tinha que ser Romeu e Julieta, tinha que ser Shakespeare.

Para viver um grande amor há que se pagar um alto preço.

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Obs: O título dessa crônica deveria ser ‘Eu fiz primeiro’ porque roubei a idéia de Cefas, que iria escrever sobre sua dor deliciosa. O livro era dele. Mas foi mais forte do que eu, pelo que peço desculpas publicamente pelo xexo.


Meire Gomes, médica

texto publicado em 21/07/2007

Um comentário:

Márcio Franco disse...

Esse tal de Bico é um desses fenômenos que surgem para engrandecer o cenário muito, mas, muito restrito, da linguagem. Não se detém na plástica, na facilidade de criar "mock up". Por isso, é um prazer participar e aplaudir um futuro "mestre". Parabéns Rodrigo Bico.